DESENHO_A-moda
Ilustração de Flávio de Carvalho. Fonte: Dialética da Moda. Exposição Comemorativa do Centenário de Flávio de Carvalho, CEDAE, Unicamp, 1999.

Flávio de Carvalho: “O berço da força poética”

22 de agosto de 2016

FAU – Maranhão – Sala dos Espelhos

Recentemente, duas exposições se dedicaram à obra do artista brasileiro Flávio de Carvalho: a de curadoria de Rui Moreira Leite, que ocorreu no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2010, e aquela organizada por Luzia Portinari Greggio, no Centro Cultural do Banco do Brasil em Brasília em 2012. Os catálogos dessas exposições e das anteriores demonstram o principal interesse de concentrar-se sobre a atuação desse artista na década de trinta, em especial como agitador cultural do meio artístico paulistano, o qual esteve responsável por colaborar com a introdução de artistas abstracionistas nos Salões de Maio e de organizar eventos no Clube dos Artistas Modernos, como o Mês das Crianças e dos Loucos, com o médico psiquiatra Osório César, além de ter fundado o Teatro da Experiência, onde fora apresentada pela primeira vez a peça O bailado do Deus morto (1933). Buscando oferecer uma alternativa a essa faceta de agitador cultural e ao foco na pluralidade do artista, este evento pretende debruçar-se sobretudo na obra de Flávio de Carvalho como escritor, a qual coaduna com o pensamento contemporâneo de que a teoria e a ficção não apresentam margens tão nítidas como propunha o projeto da autonomia da modernidade.

Flávio de Carvalho educou-se na Inglaterra durante a juventude e retornou ao Brasil após a Semana de Arte Moderna de 1922. Atuando sobretudo como arquiteto naquele período, chamou a atenção dos intelectuais da antropofagia com o seu projeto ao Palácio do Governo, de 1928, participando naquele mesmo ano como delegado antropófago no Congresso Pan-Americano de Arquitetura, no Peru, onde apresentou a sua famosa tese “A cidade do homem nu” (1931), com fortes afinidades com o manifesto de Oswald de Andrade. Foi então convidado por Raul Bopp e por Oswald de Andrade para compor a Bibliotequinha Antropofágica, na qual constaria, além de Cobra Norato (cuja primeira edição, de 1931, fora ilustrada pelo artista brasileiro), de Macunaíma (1928) e do “Manifesto antropófago”, de Oswald de Andrade, o volume de ensaios Brasil-Freud, de Carvalho. É dessa época, igualmente, o seu primeiro livro de ensaios, Experiência no 2 (1931), relato da intervenção do artista em uma procissão de Corpus Christi nas ruas de São Paulo e texto pioneiro sobre psicologia das multidões baseado nas teorias de Sigmund Freud e de Sir James Frazer, e o relato de viagens Os ossos do mundo (1936).

Esses livros, bem como muito de seus escritos e experiências posteriores, podem ser lidos à luz do diálogo entre as vanguardas de princípios do século XX (como o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo) e o primitivismo, ainda que alguns deles (como a série “Notas para a reconstrução de um mundo perdido”, publicada no Diário de S. Paulo entre 1957 e 1958) o retomem anacronicamente. Se, como o crítico norte-americano Hal Foster observa, o interesse pelas culturas primitivas na Europa surgiu de uma tentativa de constituir “ficções de origem”, no caso da América Latina as vanguardas voltaram-se a um passado nativo, anterior à influência dos colonizadores. No modernismo brasileiro, a antropofagia, ainda nas palavras de Bopp, revirou os anais totêmicos em busca das raízes brasileiras, voltando-se, portanto, aos mitos ameríndios, à cultura popular e ao folclore. Algo, no entanto, distingue Flávio de Carvalho da perspectiva antropofágica: o primitivo para ele não estava dado pelo passado, mas formava-se imprevisivelmente no curso do tempo, como uma potência de transformação latente na arte e nos gestos.

O relato de viagens Os ossos do mundo foi escrito após a ida de Flávio de Carvalho à Europa em 1934, onde o artista esteve com o intuito de participar do Congresso de Psicotécnica de Praga, evento no qual encontrou o intelectual francês Roger Caillois. Nesse texto, o primitivismo vanguardista desloca o estranhamento do novo continente — aquele que o conde Keyserling havia descrito como o “terceiro dia da criação” em Meditações sul-americanas — para a antiga Europa. O autor deu início a uma coleção de papéis higiênicos, a qual traria um indício do grau de civilidade dos povos, e debruçou-se sobre a tradição italiana de pintura da Madona e do Bambino e os corpos das italianas, concluindo que, na península itálica, a voracidade alimentar e o apetite sexual são correspondentes. Desse modo, empregou procedimentos similares aos dos surrealistas etnográficos (como Carl Einstein, Michel Leiris, Caillois e Georges Bataille), os quais procuravam produzir o choque diante das imagens da cultura europeia (de fotografias de doentes mentais, máscaras de tortura, etc.), invertendo o foco hierarquizante que normalmente situava culturas não ocidentais ou primitivas como uma origem em uma linha de desenvolvimento progressivo.

Além dos livros mencionados e de A origem animal de Deus e o bailado do Deus morto, de 1973, Flávio de Carvalho também é autor de manuscritos inéditos (alguns deles atualmente desaparecidos), inúmeros textos sobre temas diversos como estética, antropologia, arquitetura, etc., dispersos pela imprensa paulista e carioca, e de séries de ficção teórica publicadas no Diário de S. Paulo. A primeira delas, “Rumo ao Paraguai” (1943-1944), consiste no resultado de uma “missão geopolítica” de Flávio de Carvalho pela nação sul-americana, que se amplia em notas manuscritas para uma reflexão política acerca do peronismo na Argentina. “A moda e o novo homem” (1956), reunida pela editora Azougue em 2010, percebe nas formas da moda a emergência dos sintomas da história, sugerindo a partir de disciplinas como a antropologia, que a estética, como os nossos gestos, também se forma de sobrevivências do passado. A mais extensa delas, “Os gatos de Roma / Notas para a reconstrução de um mundo perdido”, publicada entre 1957 e 1958, realiza uma genealogia sobre a arte e a linguagem do homem dos primórdios, retomando o veio primitivista do primeiro modernismo, para por fim desembocar em considerações sobre o presente da Guerra Fria. Desse modo, a série traz os resquícios da ideia nietzschiana citada em Os ossos do mundo de que o tempo é passível de produzir revelações e de que o presente pode ser iluminado pelo passado.

Os textos de Flávio de Carvalho estão marcados pela insubmissão às normas gramaticais (em especial no uso da pontuação), características observadas tanto por Gilberto Freyre como por Rubem Navarra, além de uma perspectiva serial e fragmentária, análoga à aproximação surrealista do sonho e à montagem e o corte do cubismo e construtivismo, como fizera Raul Bopp em seus poemas, segundo Augusto Massi. Acentua-se, igualmente, a espontaneidade no emprego das expressões de línguas estrangeiras, recriadas por ele, e na disposição de citações soltas, com aspas total ou parcialmente omitidas, recordando-nos tanto da proximidade entre a linguagem da fala e a escrita pelos intelectuais modernistas. No entanto, de maneira distinta de Mário de Andrade, por exemplo, que se utilizava da linguagem popular em seus escritos e buscava, como intelectual, realizar uma espécie de inventário da língua brasileira em sua Gramatiquinha, Carvalho se valia da recusa às normas como mais um indício de seu espírito anarquista.

No ano de 2016, o relato de viagens Os ossos do mundo celebrará oitenta anos, e o ensaio sobre a psicologia das massas Experiência no 2 completará oitenta e cinco. No entanto, mesmo nos dias de hoje esses livros não recebem o mesmo foco que os seus retratos a óleo ou projetos arquitetônicos, contemplados por diversas exposições e catálogos. Aproveitando a ocasião dos oitenta anos do livro que foi recentemente relançado pela editora da Unicamp, este evento pretende fomentar e aprofundar o debate sobre os textos de Flávio de Carvalho, que foram relegados à margem do movimento modernista e são pouco discutidos, possivelmente devido à hibridez disciplinar que os perpassa.